Paramos num espaço pequeno, tinha uma luminária pequena no canto esquerdo da cama, ele olhou para meu rosto, esperando uma resposta, eu não sabia o que dizer. Aquela penumbra me lembrava um rosto que gostaria de esquecer, um rosto que sorria para mim, um sorriso amargo, sem gosto. Eu tive medo, sentei ao seu lado e meu corpo tremia por inteiro, ele falava um misto de repetições e idéias geniais, ele não sabia que eu estava ali. O medo tomava conta do seu labirinto de uma só via, ele não entendia. Ele não queria entender. Peguei seus dedos com toda a delicadeza que ele merecia, ele merecia o melhor de mim, meu melhor esmalte, meu melhor silencio, minhas melhores palavras. E eu estava estática, inerte a sentimentos mais intensos, estava medindo cada espaço que nos rodeava, não era para ser assim, mas como seria afinal? Quem poderia acreditar na sua verdade, nas suas promessas, na sua lealdade. Eu era um resto de cigarro e um hálito de whisky ordinário, eu era a roupa suja no varal, naquele momento eu só queria experimentar aquela pureza, aquele jeito torto de dizer: eu te amo. Seria egoísmo só desejar ser amada, seria mau gosto não poder prometer nada, porque afinal nós paramos aqui, a placa de um motel barato naquela estrada escura, parecia a melhor opção. Mas que opção existia num corpo vazio, cercado de malicia e ódio. Mas porque esse ódio não desapareceu?
Quem era aquele homem afinal? Porque sua arma não disparou a bala, enquanto ele chorava, porque suas roupas ainda estavam no armário. A mente dormia sozinha, esquecia pouco a pouco daqueles momentos, deixava para trás toda a minha vontade de parar aquele grito de pânico, aquele desespero de matar o que já estava morto, o que não estaria mais lá na volta. Quem te fez acreditar que o amor é eterno, meu caro. As mentiras já não convencem e você se parece com seu pai, já posso vê-lo sentado naquela poltrona suja a beira do gole fatal. Suas manias ainda me confundem, seria você ou serei eu. Quem de nós esta aqui nessa cama de lençóis brancos? Com um sorriso morno, ele então toca minha mão com mais força, ele interrompe minha saliva, com um suspiro. Talvez, diz ele.
Talvez, porque?
Porque a noite não terminou, nós não dissolvemos em um sonho
Nós temos a nós, e a cama ainda esta estendida.
Vá então, ela grita num misto de medo e desejo.
O cigarro queima no cinzeiro, o quarto já estava em estado de má conservação, o rodapé do canto esquerdo da porta do banheiro tinha uma marca, parecia ser um pouco de desgaste ou quem sabe uma batida. Será que alguém rompeu o silêncio, e chutou aquela porta?
Três anos naquela cadeia fétida, aquele cheiro de esgoto e pasta de dente, sim, tinha um preso lá que escova os dentes seis vezes ao dia. O homem acendia mais um cigarro e pensava, em qual quarto de motel ela estaria esta noite, será que já gozou, será que ainda coça a nuca antes de chegar no êxtase. As paredes cheias de mofo e rabiscos denunciavam sua realidade de limitações.
Acorda garota, já acabou nosso tempo.
Como? Eu dormi? Fizemos algo?
Sim, nós rolamos pela cama, fizemos juras amor eterno e adormecemos. Mas não tem problema, nós temos tempo. Tempo? Que tempo? Quem é você afinal, como pode entender do passar das horas, quantas vezes você já esperou por alguém? Quantas paixões eu já vi acabar em algumas horas. Alguém sabe exatamente o minuto em que a paixão foge pela janela? Eu tentei te dizer meu caro, a vida não é tão longa quanto parece. Esse controle é ilusão, somos reféns de nós mesmos... Entregue-se, me escute, não fuja, tenha medo, agonize, dance, pire!! Mas chega de me dizer que o caminho é tranqüilo, a quem você quer convencer? eu vejo seus pés trocados pisando nas linhas das calçadas, e o seu copo, ele continua intacto. Quem é você, afinal? E aquela voz parece que vinha de um lugar jamais evocado: eu sou aquele que segurei a bala, tirei seu vestido, prendi o homem e roubei suas lembranças.
Ah, então era você. Como pude esquecer esse rosto, quando o vi , logo me lembrei do rosto do meu avô. Quem? Não pelas marcas ou pelo cheiro de tabaco, mas pela expressão de sabedoria, você me enganou direitinho.
Que bom! Agora se vista, é tempo de voltar a rotina, leve uma maça para ele, leve flores, mas não diga a palavra perdão, essa palavra não deve ser proferida. Ela balançou a cabeça num sinal de compreensão e com um olhar de duvida, vestiu a sandália velha e deixou seus últimos trocados do lado da luminária pequena. E foi assim que se despediu de tudo que havia perguntado, de todo o controle perdido, de toda a falha e falta de memória... Ela só queria comprar uma maça, deitar num lençol limpo e esperar que o hálito ficasse menos espesso. A dor, a mágoa e a angustia costumavam deixar seu hálito assim. Um dia ela volta lá, disso nós sabemos, agora ela já sabe quem é..já é um começo.